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domingo, 27 de abril de 2014

"Frames" será lançada hoje em Belo Horizonte (MG)

FRAMES – um ensaio para R. W. Fassbinder


Um set de cinema. Nele, quatro personagens – um ator, uma atriz, um diretor e uma assistente – se cruzam constantemente, revelando aos poucos facetas de suas relações pessoais e do filme que estão rodando – uma obra cujas narrativas ficcionais se confundem com os dramas vividos durante o próprio processo de filmagem: o choque de um roteirista ao se deparar com seu apartamento totalmente destruído e seus escritos incinerados se mistura com a perplexidade de dois atores que se encontram em uma peça sem final e sem necessidade dramática perceptível; a amargura de um roteirista tentando conciliar sua vida íntima, decisões familiares e seu trabalho, em meio a uma crise de bloqueio criativo, encontra ecos na vida de uma garçonete que busca alívio momentâneo verbalizando suas frustrações paras as mesas vazias do bar em que atende, como numa audição para uma plateia inexistente. Essas são algumas das histórias que se enredam num jogo onde o real e o ficcional já não fazem diferença, mas servem apenas para reafirmar a insensatez que impera no cotidiano de todos.




APRESENTAÇÃO, 
por Diones Camargo


O cinema é a verdade  24 quadros por segundo.
Jean-Luc Godard


Na época do surgimento do cinema – mais precisamente a partir do advento dos filmes falados – o texto teatral serviu de base para muitas películas daquele período devido à sua óbvia característica de ser massivamente verbal. Porém, após poucas décadas, a chamada “sétima arte” se aperfeiçoou de tal maneira que acabou se tornando, ela própria, uma das propositoras mais eficazes para as outras artes narrativas, influenciando tanto a cena teatral quanto expandindo suas possibilidades dramáticas tradicionais. Atualmente, o cinema ainda busca nos avanços da linguagem dos palcos particularidades que o permitam fugir ao realismo quase onipresente nas telas. Da mesma maneira, o teatro ainda procura no cinema algumas soluções narrativas que tirem o espetáculo do patamar desgastado da mera significação racional, alçando-o a uma camada mais sensorial, intuitiva e, por vezes, delirantemente visual. A tal chama que clamava Antonin Artaud em seus escritos encontra hoje, na interação entre essas duas linguagens, a combinação ideal para incendiar a imaginação das plateias.

No que se refere aos meus textos para teatro, o cinema sempre teve uma importância fundamental, não apenas pelas soluções dinâmicas para transições de cenas, por exemplo, como também pela construção de tensão dramática a partir rápidas inserções de fragmentos e informações, chegando até mesmo à utilização de leitmotivs comuns à arte cinematográfica, (como é o caso de “Último Andar”, uma das minhas peças ainda inéditas, uma homenagem aos filmes de ficção científica que eu assistia na infância, principalmente a “Blade Runner - o Caçador de Androides”, de Ridley Scott). Mas essa influência da narrativa fílmica não termina aí. Em obras como 9 Mentiras Sobre a Verdade e Hotel Fuck – Num Dia Quente a Maionese Pode Te Matar, o cinema – seu imaginário e características formais – se manifesta não apenas na fragmentação, na metalinguagem e na visualidade exacerbada, mas principalmente através da utilização de personagens que, inseridos nesse contexto, reforçam essas características e remetem a esse universo em seus próprios discursos e vivências. Nessas peças, a ficção do cinema (esse jogo ilusório, do qual o teatro é igualmente pródigo) é emulada no palco além de mero recurso formal: ela é a realidade dos seus personagens; faz parte do cotidiano daquelas pessoas às voltas com as filmagens de um filme B, por exemplo, ou na mente de uma figurante que sonha em um dia alcançar o protagonismo; é o seu habitat e também a metáfora dos seus desejos de realização pessoal.

Agora, a convite do Janela de Dramaturgia, decidi voltar a esse universo, porém de uma maneira totalmente nova: a partir de excertos dramáticos que ficaram de fora de algumas das minhas peças anteriores, ou que serviram aos seus processos apenas como exercício de escrita, além de esboços para a minha nova peça, resolvi reunir esses fragmentos de modo a estabelecer elos que antes estavam escondidos ou foram ignorados numa primeira leitura. Aqui, as cenas agrupadas falam o tempo todo sobre cinema, mas antes de apresentarem uma narrativa que se vale de uma unidade para, então, remeter ao esfacelamento, Frames – um ensaio para R. W. Fassbinder faz o contrário: nesse trabalho, parto das diferenças (que originaram cada trabalho) e vou em busca de uma unidade conceitual, com seus encaixes que unam as sobreposições, os seus contrastes e até mesmo suas contradições. Assim, trechos que aparentemente não têm qualquer sentido, funcionam como um sonho onde as simbologias se conectam e se ativam pelo acúmulo e não pelas suas características isoladas.  

Esse tipo de desafio é, acima de tudo, uma oportunidade de expandir a minha pesquisa de escrita dramática. E isso por três motivos confluentes: primeiro porque, desde que comecei a escrever para teatro, evitei ao máximo as chamadas “colagens” – algo muito comum numa cultura com fraca tradição e formação de dramaturgos como a nossa. Tinha receio de cair nas facilidades e armadilhas dessa técnica que, quando mal utilizada, pode afastar até o mais entusiasmado dos leitores/espectadores. No entanto, minha intenção agora é justamente essa: partir desses episódios e encontrar neles uma coesão que os torne maiores do que são isoladamente, como um alfabeto novo formando frases inesperadas; em segundo lugar porque, por se tratar de um experimento dramático, posso me valer do conhecimento acumulado durante quase 10 anos de prática contínua de escrita e pôr em prática o que aprendi não apenas na arquitetura de textos teatrais, mas também na construção de dois roteiros para cinema (entre eles um longa-metragem que está prestes a ser filmado); por último, pelo motivo que considero o principal de todos: porque atualmente estou às voltas com um personagem que é, ele mesmo, parte vital próprio do cinema: o diretor, roteirista, produtor, ator e dramaturgo alemão Rainer Werner Fassbinder, cuja biografia estou na incumbência de levar aos palcos ao lado de uma companhia de Porto Alegre. Diferente das outras biografias com as quais já trabalhei (Andy Warhol e Bob Dylan em Andy/Edie, e Nelson Rodrigues e Cacilda Becker em Os Plagiários – Uma Adulteração Ficcional Sobre Nelson Rodrigues) nesse novo trabalho a intenção será diluir os acontecimentos da vida desse prolífico cineasta em sua vasta obra, mostrando-o através de seus personagens, que são – como não poderia deixar de ser – reflexos de suas pulsões e características mais íntimas. Uma obra na qual valerá, mais que a (falsa) ordenação da “individualidade”, o caos da multiplicidade. Assim, a personalidade de Fassbinder será vista, principalmente, espelhadas nas geniais figuras criadas por ele, com num grande mosaico do artista genial e homem obsessivo que ele sempre foi. O criador e suas criaturas, sem definirmos quando termina um e começa(m) o(s) outro(s).

Aliás, é exatamente isso o que tentei aqui. A revelação de algo inesperado através do consciente entrelaçamento entre realidade e ficção, sonho e imaginação, sem estabelecer distinção clara entre eles.


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