Hans-Thies Lehmann, na sua Bíblia sobre o teatro contemporâneo intitulada Teatro Pós-Dramático (talvez uma obra ainda muito recente pra ser chamada exatamente de Bíblia, mas que já tem inúmeros fiéis que a seguem como tal) cita constantemente os quatro cavaleiros do apocalipse da cena contemporânea: Heiner Müller, Bob Wilson, Elfried Jelinek e Nekrosius. Fosse o livro de Lehmann o jogo dos seis graus de separação, ao menos três destes nomes se conectariam instantaneamente depois deste Quartett.
Choderlos de Laclos compôs seu romance epistolar As Relações Perigosas valendo-se das figuras de nobres franceses para mostrar que a combinação entre conforto material e tédio profundo pode causar infortúnios múltiplos – especialmente àqueles que nada têm a ver com isso – numa crítica à falência moral do período em que viveu. Já Heiner Müller dividiu os cenários de sua peça entre um salão da aristocracia pré-Revolução Francesa e um bunker pós-Terceira Guerra Mundial, reafirmando a permanência destes males. Apesar disso, a dramaturgia de Müller – em que pese sua sempre pertinente atualização dos mitos, arquétipos e fatos históricos, e sua incrível capacidade de sintetizar o pensamento de uma obra ao transpô-la para as gerações atuais – tem, em Quartett, talvez o seu trabalho mais restrito e óbvio em termos imagéticos e metafóricos. Laclos, utilizando uma linguagem rebuscada (comum à época), ainda consegue ser mais cruel e infinitamente mais terrível do que o dramaturgo alemão.
E é aqui que reside o principal mérito da montagem de Wilson: Quartett, como era de se esperar, é uma ópera de extremo apuro visual, uma máquina cênica precisa. O fascinante acúmulo de texturas sonoras expande o efeito puramente verborrágico e poético do texto de Müller (às vezes repetindo-o à exaustão), dissolvendo-o até torná-lo mero contraponto aos gestos e às imagens que aparecem no palco. Porém, é importante questionar se o que é alardeado por Lehmann nos seus escritos (que a primazia do texto acorrenta o espectador somente numa possibilidade da cena) também não acontece aqui, pelo seu oposto: uma visualidade sedutora, deliciosa e tecnicamente perfeita, porém igualmente escravizante. (voltando ao Nekrosius, o Fausto que ele dirigiu era bem mais impactante ao utilizar variações de texturas visuais e sonoras igualmente belas, baseando-se principalmente na inventividade que estas ofereciam à cena, o que tornava a conexão entres todos os elementos muito mais eficiente).
Apesar disso, não há como não ficar embevecido com as variações constantes de elementos e cores na cena arquitetada por Wilson. Os corpos que projetam signos instigantes e se distorcem (afastando qualquer possibilidade da representação tradicional baseada meramente em personagens) e as vozes que se animalizam. Aliás, esta escolha por transformar os atores em feras (tigres, répteis, lobos, cães, etc) intensifica ainda mais as figuras diabólicas de Isabelle Huppert e Ariel García Valdés que, desde os figurinos, passando pela maquiagem, mas principalmente nas atuações formidáveis, condensam em si a carga demoníaca dos personagens que “interpretam”. Esses símbolos do horror, colocados lado a lado a um deleite visual constante, nos obriga a lembrarmos de que se trata de uma luta entre o bem e o mal, onde os limites entre um e outro são confundidos o tempo todo – num jogo de ambiguidades complexas, como convém quando se analisa esses conceitos extremos. Algo como um aviso permanente de que existe sempre um Valmont e uma Merteuil à espreita para devorar suas caças, que são não apenas os outros personagens, mas também eles próprios. Esta é, evidentemente, uma reafirmação da estrutura dramatúrgica utilizada por Müller no texto, que por sua vez é baseada na constatação ferina de Laclos de que qualquer desvio de caráter é facilmente esquecido quando vemos à nossa frente uma bela arcada dentária e um vistoso aparelho de chá. E isso, quer Laclos, quer Müller tenham denunciado – e Wilson se deliciado como ninguém –, nunca muda. Vive La Révolution!
Clique no link abaixo para ler o trecho do texto publicado no Segundo Caderno do jornal Zero Hora: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2665546.xml&template=3898.dwt&edition=13200§ion=999
Clique aqui para ler a versão completa no blog Caco ZH
Choderlos de Laclos compôs seu romance epistolar As Relações Perigosas valendo-se das figuras de nobres franceses para mostrar que a combinação entre conforto material e tédio profundo pode causar infortúnios múltiplos – especialmente àqueles que nada têm a ver com isso – numa crítica à falência moral do período em que viveu. Já Heiner Müller dividiu os cenários de sua peça entre um salão da aristocracia pré-Revolução Francesa e um bunker pós-Terceira Guerra Mundial, reafirmando a permanência destes males. Apesar disso, a dramaturgia de Müller – em que pese sua sempre pertinente atualização dos mitos, arquétipos e fatos históricos, e sua incrível capacidade de sintetizar o pensamento de uma obra ao transpô-la para as gerações atuais – tem, em Quartett, talvez o seu trabalho mais restrito e óbvio em termos imagéticos e metafóricos. Laclos, utilizando uma linguagem rebuscada (comum à época), ainda consegue ser mais cruel e infinitamente mais terrível do que o dramaturgo alemão.
E é aqui que reside o principal mérito da montagem de Wilson: Quartett, como era de se esperar, é uma ópera de extremo apuro visual, uma máquina cênica precisa. O fascinante acúmulo de texturas sonoras expande o efeito puramente verborrágico e poético do texto de Müller (às vezes repetindo-o à exaustão), dissolvendo-o até torná-lo mero contraponto aos gestos e às imagens que aparecem no palco. Porém, é importante questionar se o que é alardeado por Lehmann nos seus escritos (que a primazia do texto acorrenta o espectador somente numa possibilidade da cena) também não acontece aqui, pelo seu oposto: uma visualidade sedutora, deliciosa e tecnicamente perfeita, porém igualmente escravizante. (voltando ao Nekrosius, o Fausto que ele dirigiu era bem mais impactante ao utilizar variações de texturas visuais e sonoras igualmente belas, baseando-se principalmente na inventividade que estas ofereciam à cena, o que tornava a conexão entres todos os elementos muito mais eficiente).
Apesar disso, não há como não ficar embevecido com as variações constantes de elementos e cores na cena arquitetada por Wilson. Os corpos que projetam signos instigantes e se distorcem (afastando qualquer possibilidade da representação tradicional baseada meramente em personagens) e as vozes que se animalizam. Aliás, esta escolha por transformar os atores em feras (tigres, répteis, lobos, cães, etc) intensifica ainda mais as figuras diabólicas de Isabelle Huppert e Ariel García Valdés que, desde os figurinos, passando pela maquiagem, mas principalmente nas atuações formidáveis, condensam em si a carga demoníaca dos personagens que “interpretam”. Esses símbolos do horror, colocados lado a lado a um deleite visual constante, nos obriga a lembrarmos de que se trata de uma luta entre o bem e o mal, onde os limites entre um e outro são confundidos o tempo todo – num jogo de ambiguidades complexas, como convém quando se analisa esses conceitos extremos. Algo como um aviso permanente de que existe sempre um Valmont e uma Merteuil à espreita para devorar suas caças, que são não apenas os outros personagens, mas também eles próprios. Esta é, evidentemente, uma reafirmação da estrutura dramatúrgica utilizada por Müller no texto, que por sua vez é baseada na constatação ferina de Laclos de que qualquer desvio de caráter é facilmente esquecido quando vemos à nossa frente uma bela arcada dentária e um vistoso aparelho de chá. E isso, quer Laclos, quer Müller tenham denunciado – e Wilson se deliciado como ninguém –, nunca muda. Vive La Révolution!
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