Um set de cinema. Nele, quatro personagens – um ator, uma atriz, um
diretor e uma assistente – se cruzam constantemente, revelando aos poucos
facetas de suas relações pessoais e do filme que estão rodando – uma obra cujas
narrativas ficcionais se confundem com os dramas vividos durante o próprio
processo de filmagem: o choque de um roteirista ao se deparar com seu apartamento
totalmente destruído e seus escritos incinerados se mistura com a perplexidade
de dois atores que se encontram em uma peça sem final e sem necessidade
dramática perceptível; a amargura de um roteirista tentando conciliar sua vida
íntima, decisões familiares e seu trabalho, em meio a uma crise de bloqueio
criativo, encontra ecos na vida de uma garçonete que busca alívio momentâneo
verbalizando suas frustrações paras as mesas vazias do bar em que atende, como numa
audição para uma plateia inexistente. Essas são algumas das histórias que se
enredam num jogo onde o real e o ficcional já não fazem diferença, mas servem
apenas para reafirmar a insensatez que impera no cotidiano de todos.
APRESENTAÇÃO,
por Diones Camargo
“O cinema é a verdade 24 quadros
por segundo.”
Jean-Luc Godard
Na época do surgimento do cinema – mais precisamente a partir do advento
dos filmes falados – o texto teatral serviu de base para muitas películas
daquele período devido à sua óbvia característica de ser massivamente verbal.
Porém, após poucas décadas, a chamada “sétima arte” se aperfeiçoou de tal
maneira que acabou se tornando, ela própria, uma das propositoras mais eficazes
para as outras artes narrativas, influenciando tanto a cena teatral quanto expandindo
suas possibilidades dramáticas tradicionais. Atualmente, o cinema ainda busca
nos avanços da linguagem dos palcos particularidades que o permitam fugir ao
realismo quase onipresente nas telas. Da mesma maneira, o teatro ainda procura
no cinema algumas soluções narrativas que tirem o espetáculo do patamar desgastado
da mera significação racional, alçando-o a uma camada mais sensorial, intuitiva
e, por vezes, delirantemente visual. A tal chama que clamava Antonin Artaud em
seus escritos encontra hoje, na interação entre essas duas linguagens, a
combinação ideal para incendiar a imaginação das plateias.
No que se refere aos meus textos para teatro, o cinema sempre teve uma
importância fundamental, não apenas pelas soluções dinâmicas para transições de
cenas, por exemplo, como também pela construção de tensão dramática a partir rápidas
inserções de fragmentos e informações, chegando até mesmo à utilização de leitmotivs comuns à arte
cinematográfica, (como é o caso de “Último Andar”, uma das minhas peças ainda
inéditas, uma homenagem aos filmes de ficção científica que eu assistia na
infância, principalmente a “Blade Runner - o Caçador de Androides”, de Ridley
Scott). Mas essa influência da narrativa fílmica não termina aí. Em obras como 9 Mentiras Sobre a Verdade e Hotel Fuck – Num Dia Quente a Maionese Pode Te
Matar, o cinema – seu imaginário e características formais – se manifesta não
apenas na fragmentação, na metalinguagem e na visualidade exacerbada, mas
principalmente através da utilização de personagens que, inseridos nesse
contexto, reforçam essas características e remetem a esse universo em seus
próprios discursos e vivências. Nessas peças, a ficção do cinema (esse jogo
ilusório, do qual o teatro é igualmente pródigo) é emulada no palco além de mero
recurso formal: ela é a realidade dos
seus personagens; faz parte do cotidiano daquelas pessoas às voltas com as
filmagens de um filme B, por exemplo, ou na mente de uma figurante que sonha em
um dia alcançar o protagonismo; é o seu habitat
e também a metáfora dos seus desejos de realização pessoal.
Agora, a convite do Janela de Dramaturgia, decidi voltar a esse universo,
porém de uma maneira totalmente nova: a partir de excertos dramáticos que
ficaram de fora de algumas das minhas peças anteriores, ou que serviram aos
seus processos apenas como exercício de escrita, além de esboços para a minha
nova peça, resolvi reunir esses fragmentos de modo a estabelecer elos que antes
estavam escondidos ou foram ignorados numa primeira leitura. Aqui, as cenas agrupadas
falam o tempo todo sobre cinema, mas antes de apresentarem uma narrativa que se
vale de uma unidade para, então, remeter ao esfacelamento, Frames – um ensaio para R. W. Fassbinder faz o contrário: nesse
trabalho, parto das diferenças (que originaram cada trabalho) e vou em busca de
uma unidade conceitual, com seus encaixes que unam as sobreposições, os seus
contrastes e até mesmo suas contradições. Assim, trechos que aparentemente não
têm qualquer sentido, funcionam como um sonho onde as simbologias se conectam e
se ativam pelo acúmulo e não pelas suas características isoladas.
Esse tipo de desafio é, acima de tudo, uma oportunidade de expandir a
minha pesquisa de escrita dramática. E isso por três motivos confluentes:
primeiro porque, desde que comecei a escrever para teatro, evitei ao máximo as
chamadas “colagens” – algo muito comum numa cultura com fraca tradição e
formação de dramaturgos como a nossa. Tinha receio de cair nas facilidades e
armadilhas dessa técnica que, quando mal utilizada, pode afastar até o mais entusiasmado
dos leitores/espectadores. No entanto, minha intenção agora é justamente essa: partir
desses episódios e encontrar neles uma coesão que os torne maiores do que são
isoladamente, como um alfabeto novo formando frases inesperadas; em segundo lugar
porque, por se tratar de um experimento dramático, posso me valer do conhecimento
acumulado durante quase 10 anos de prática contínua de escrita e pôr em prática
o que aprendi não apenas na arquitetura de textos teatrais, mas também na
construção de dois roteiros para cinema (entre eles um longa-metragem que está
prestes a ser filmado); por último, pelo motivo que considero o principal de
todos: porque atualmente estou às voltas com um personagem que é, ele mesmo,
parte vital próprio do cinema: o diretor, roteirista, produtor, ator e
dramaturgo alemão Rainer Werner Fassbinder, cuja biografia estou na incumbência
de levar aos palcos ao lado de uma companhia de Porto Alegre. Diferente das
outras biografias com as quais já trabalhei (Andy Warhol e Bob Dylan em
Andy/Edie, e Nelson Rodrigues e Cacilda Becker em Os Plagiários – Uma
Adulteração Ficcional Sobre Nelson Rodrigues) nesse novo trabalho a intenção
será diluir os acontecimentos da vida desse prolífico cineasta em sua vasta
obra, mostrando-o através de seus personagens, que são – como não poderia
deixar de ser – reflexos de suas pulsões e características mais íntimas. Uma
obra na qual valerá, mais que a (falsa) ordenação da “individualidade”, o caos
da multiplicidade. Assim, a personalidade de Fassbinder será vista,
principalmente, espelhadas nas geniais figuras criadas por ele, com num grande
mosaico do artista genial e homem obsessivo que ele sempre foi. O criador e
suas criaturas, sem definirmos quando termina um e começa(m) o(s) outro(s).
Aliás, é exatamente isso o que tentei aqui. A revelação de algo
inesperado através do consciente entrelaçamento entre realidade e ficção, sonho
e imaginação, sem estabelecer distinção clara entre eles.