Comecemos com os fatos: Marquise é de uma chatice sem limites! Não é o pior filme da história, certamente, mas desconfio que o pior seja ao menos divertido. Este Marquise é empertigado como todo o nobre do século XVII. E como suportar uma obra que visa não apenas ilustrar uma determinada época, mas que se põe na obrigação de captar o “estilo” dela? Se fosse nas mãos de um bom diretor, a façanha seria memorável. Nas mãos frouxas de Véra Belmont o desastre é maior que o do Titanic (agora o navio, não o filme).
Ao menos esta novela das 8 estrelada por Sofie Marceau nos apresenta algumas preciosidades históricas. Por exemplo: o falecimento do grande comediante Du Parc lembra as circunstâncias da morte de Molière durante uma das representações do seu Doente Imaginário. Naquela época havia uma lei que impedia os pagãos (leia-se: quem não fosse nobre e não tivesse posses) de ser enterrado em Paris. Estes moribundos eram conduzidos a um cemitério, num vale a alguns quilômetros da capital Francesa, onde eram então acomodados. Logo no início o espectador é apresentado aos protagonistas e às linhas gerais da trama: Molière e sua trupe fazem uma apresentação nas ruas imundas da “cidade luz”. Du Parc conhece e apaixona-se pela bela dançarina Marquise, que é casada às pressas por um padre (no melhor estilo farsesco das comédias de Molière, com direito à piadinhas com o pai interesseiro da noiva, puxões de braço de um lado a outro do palco e público maltrapilho aplaudindo os recém-casados). Depois vem Racine e suas tragédias. Depois vem Luis XIV. Logo vem o sono...
Racine é grave e melancólico; Molière é amoral e excêntrico. Marquise é meiga e sensual; Du Parc é gordo e tem bom coração. As histórias se cruzam e se enredam. Sentimentos nobres conflituam-se com a força criativa dos dois gênios teatrais do período Neoclássico; uma história sobre a superação dos limites e da verdade do coração acima das aparências impostas apenas pelas palavras. Tudo muito lindo, envolto em belos cenário, figurinos e maquiagens dignos do César. Quando acordei, confesso que por alguns segundos imaginei estar acompanhando a saga de Xica da Silva (dublada do português para o francês). Infelizmente era o mesmo filme ainda.
É importante notar também que a estrutura do roteiro propõe um clima similar ao estilo neoclássico, tão em voga na França do século XVII. A alta intelectualidade da época assimilou a regra das três unidades (tempo, espaço e ação) - que Aristóteles havia postulado em sua Poética cerca de 2.000 anos antes - de forma às vezes cega e até mesmo abusiva. E o apreço que tinham por Racine e outros tragediógrafos era devido ao empenho destes em canalizar estas “fórmulas” para a estrutura de suas tragédias. No cinema é praticamente impossível manter essas regras no desenvolvimento da narrativa, mas pode-se conservar as características dramáticas da época na construção dos personagens. No caso da protagonista, parece ser uma mistura das mais altas virtudes herdada dos trágicos (sua insegurança por não ser considerada uma boa intérprete, sua propensão à “verdade” no palco, sua aflição pela morte do marido e sua profunda decepção e desespero suicida por ter perdido o papel de Andrômaca para a sua fiel camareira – atriz principiante e malvada nas horas vagas); a esta alma sofredora adiciona-se uma pitada do cômico e do mundano evocados pela farsa, e então temos uma mulher que xinga um típico ator de tragédias durante um ensaio, por considerar sua entonação muito empolada, ou ainda que oferece seu corpo a Racine, como recompensa pelo esforço deste ao escrever Andrômaca (num belo gesto de entrega total à arte; coisa que o autor de Fedra recusa, em dia com os nobres padrões de um artista puro e com valores elevados). Ah... que saudades da Xica da Silva!
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