Na época fiz uma piada que me pareceu um tanto quanto mordaz, mas que hoje penso ser apropriada para lançar-nos a uma discussão importante: existe mesmo uma dramaturgia gaúcha contemporânea? A resposta é afirmativa. Existe pouca, é verdade, mas existe. Temos grandes autores na história do nosso teatro: Qorpo Santo, Vera Karam, Carlos Carvalho e Caio Fernando Abreu são de grande importância para a dramaturgia brasileira; Ivo Bender continua escrevendo e recentemente lançou uma nova peça. Mas quem são os representantes da safra de jovens dramaturgos do nosso Estado?
A carência de novos autores ocorre em todas as regiões do Brasil, mas nos grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, devido à produção teatral diversificada e aos núcleos de formação, essa falta é menos acentuada. Porém, se considerarmos apenas o teatro feito aqui em Porto Alegre, constataremos a supremacia de peças de autores estrangeiros que são traduzidas e encenadas nos nossos palcos, enquanto muitos dramaturgos brasileiros ainda têm suas obras ignoradas, mesmo aquelas que obtiveram algum destaque. Não estou propondo uma retaliação aos textos estrangeiros (seria ingenuidade sugerir tal absurdo!). Obviamente a qualidade é o nivelador dessa predileção dos encenadores e dos grupos e, independentemente da origem, me refiro nestas linhas apenas à dramaturgia que mereça tal definição. Mas, ainda evitando a ingenuidade, sabemos que a excelência e constância de qualquer produção artística tem a ver com uma política de investimento no aparato cultural e, nesse aspecto, ainda ficamos bem atrás de outros países. O que quero dizer é que me parece que em alguns casos o atrativo do "além-mar" norteia a nossa cena teatral. Questiono se o desconhecimento da maioria dos artistas quanto aos nossos autores é mera desatenção ou se é efetivamente um hábito. Se for o que penso, esse hábito passará por uma transformação, pois nos últimos anos surgiram diversos concursos e incentivos para a criação de textos dramáticos de qualidade. Pode levar algum tempo ainda e requerer certa dose de paciência. De nossa parte, resta abrirmos os olhos e os ouvidos para as obras que estão surgindo.
Além dos dramaturgos referidos no primeiro parágrafo deste artigo, posso citar aqui uma pequena lista daqueles que de alguma forma estão produzindo obras interessantes para uma atualização da dramaturgia gaúcha: Felipe Vieira (IntenCidade I - Voar), Carina Sehn (Código de Barras), Paulo Scott (Crucial Dois Um), Mary Farias e Paulo Gleich (os dois últimos ainda inéditos nos palcos). Em comum todos buscam uma expansão das possibilidades narrativas até aqui experimentadas. Além da preocupação com a forma e — principalmente — o discurso, esses autores partem de referências contemporâneas para abordar temas atuais, buscando o diálogo com espectadores que possivelmente não se sentem identificadas com a maior parte dos conflitos e personagens representados no palco.
Essa nova safra de dramaturgos do RS tem o desafio que é o de não apenas renovar uma tradição do texto teatral (mesmo porque isso freqüentemente acaba na mera pretensão), mas principalmente o de falar a um público desacostumado à linguagem dos palcos, despertando novos significados em novas platéias. E é importante ressaltar que o fato de escrever pensando numa determinada audiência não deve ser considerado como concessão artística (muitos dos grandes escritores usaram esse faro para a criação das suas mais importantes obras); a constatação de que o espectador é o interlocutor primordial para o evento teatral move a roda da dramaturgia.
Quando escrevi minha primeira peça, Andy/Edie (2006), não imaginava que esta atrairia um público tão vasto. Por mérito dos artistas envolvidos na montagem e do próprio texto, que trazia à cena personagens que hoje permeiam o imaginário contemporâneo, foi isso o que aconteceu. O tema (a necessidade abusiva de fama para suprir carências mal resolvidas) e a abordagem (diálogos sarcásticos e cruéis para falar de relações descartáveis numa sociedade de consumo voraz) foram decisivos para esta identificação. Escrevi o que quis, como quis, no isolamento do meu quarto — consciente de que este isolamento é apenas físico, nunca cultural. O reconhecimento artístico desta empreitada foi apenas uma parte da satisfação obtida: o fato de ser abordado em bares por jovens que nunca haviam pisado numa sala de espetáculos e que comentavam empolgados sobre como a peça os divertiu e comoveu foi um incentivo determinante para a criação do meu segundo texto, Parque de Diversões (2008), escrito em parceria com um amigo de longa data, o também ator e diretor Marcos Contreras.
Nesta peça seguimos o exemplo do movimento que ocorre hoje na Praça Roosevelt, em São Paulo. Os espetáculos ali apresentados visam atrair um público de 20 a 30 e poucos anos, mas que não encerram apenas nele seu campo de visão. Apostando numa dramaturgia despretensiosa, com produção independente e feitas para uma circulação imediata, as montagens se sucedem rapidamente em horários e temporadas consecutivas nos espaços que se acumulam numa única rua. O teatro produzido na Praça Roosevelt fez ressurgir o interesse dos jovens pela linguagem do drama. E isso acabou atraindo outras platéias também. Seus freqüentadores, bebendo nos bares ou em pé na calçada enquanto aguardam a sessão da peça de seu interesse, discutem sobre o que viram e fazem daquele um saudável ambiente de renovação do teatro Brasileiro. Mas isso é diferente do que podemos classificar como "teatro temático", algo que tem sido feito aos montes e que, apesar de garantir a sobrevivência de alguns poucos mambembes, em nada contribui para a formação de um público heterogêneo. Normalmente, vicia o público num único tipo de espetáculo e o afasta de outras propostas de encenação — inclusive daquelas onde o drama tenta uma libertação de seu interlocutor, caso que a dramaturgia contemporânea por vezes investiga. Me refiro a um teatro que dialogue com diferentes espectadores, oferecendo referências com as quais estes possam se relacionar, abrindo espaço à transformação.
Em Parque de Diversões criamos uma obra que nasceu com vistas a um determinado público, mas que também não o tinha como único alvo. Mesmo sendo um texto por vezes demasiado autoral, os conflitos do personagem são muito parecidos com os dramas da nossa geração. Porém, como sabemos, o conceito de geração hoje não é mais tão estanque quanto há algumas décadas, portanto tínhamos consciência de que estávamos mexendo num vespeiro bem mais complexo do que poderia aparentar. E também sabíamos que não estávamos criando uma "peça temática", pois como autores falaríamos de experiências e referências culturais que supostamente todos os espectadores reconheceriam, mas que não necessariamente teriam vivenciado da mesma maneira. E para mantermos a identificação entre personagem e platéia, nos concentramos no que de essencialmente humano tínhamos para contar. E isso, como se sabe, sempre salva qualquer obra.
Fotos Pamela Ferrer
Texto Publicado Originalmente no Blog Caco (Zero Hora. Com)